A Receita Federal e os Médicos
A Receita Federal do Brasil, ao longo dos anos, veio se estruturando para ter o melhor e mais moderno aparato fiscalizatório do mundo, com o intuito de analisar as informações disponibilizadas pelo contribuinte por meio de inúmeras declarações obrigatórias.
Anualmente é divulgado o “Plano Anual da Fiscalização” da Secretaria da Receita Federal do Brasil, com os resultados da fiscalização do ano anterior e metas e diretrizes para o ano corrente.
Em 2017, a estimativa para lançamentos de ofício era de R$143,43 bilhões, como constava do Plano referente àquele exercício. Essa estimativa foi superada de forma expressiva: o montante de crédito tributário alcançou o valor de R$204,99 bilhões, o que representa um montante 68,5% maior do que o valor lançado em 2016 (R$121,66 bilhões)[1].
Já em 2018, o montante de crédito tributário recuperado pelo Fisco foi de R$186,93 bilhões, superando em 25,1% a estimativa de lançamentos de ofício para o ano, de R$149,34 bilhões, 9,2% menor que o lançado em 2017[2].
O aparato fiscalizatório não tem apenas como alvo a sociedades tradicionais e tem concentrado esforços nas sociedades médicas registradas e atuantes no Brasil.
Em procedimentos de fiscalização, os auditores fiscais têm entendido que a sociedade de profissionais não possui clientes próprios, não se apresentando ao mercado como entidade autônoma. Segundo o Fisco, não havendo colaboração entre os sócios na prestação dos serviços, não existiria uma verdadeira sociedade.
Assim, os auditores entendem que profissionais liberais, como médicos, recebem rendimentos tributáveis pelo IRPF, mas constituem empresas e tributam seus rendimentos como receitas das sociedades. Essas sociedades de profissionais geralmente optam pelo sistema do lucro presumido, com posterior distribuição dos lucros apurados aos sócios como rendimentos isentos do IRPF.
A tributação da pessoa jurídica optante pelo lucro presumido é feita com base no faturamento, independentemente do lucro apurado. Em regra, a tributação dos lucros com isenção está limitada ao lucro presumido deduzido dos tributos devidos (IRPJ, CSLL, COFINS e PIS). Caso a pessoa jurídica mantenha escrituração contábil, poderá apurar lucro em balanço e terá o lucro contábil como limite de distribuição de lucros.
A fiscalização tem desconsiderado a personalidade jurídica das sociedades, bem como toda escrita contábil, por entender que o contribuinte está agindo em conluio com seus sócios, utilizando-se da pessoa jurídica interposta para simular a distribuição de lucros e, desta forma, receber honorários médicos sem recolher o IRPF supostamente devido.
Mais que isso, a fiscalização conclui que o contribuinte não pode ter praticado apenas uma conduta negligente, já que o único objetivo da constituição da pessoa jurídica seria para mascarar o recebimento de honorários médicos por parte de seus sócios visando uma economia ilícita de tributos. Com isso, atribui-se aos profissionais a conduta definida como sonegação no art. 71[3] da Lei n. 4.502/64[4], bem como as condutas de fraude e conluio, previstas nos art. 72[5] e 73[6], da mesma Lei.
E as consequências práticas vão além dos limites, com a aplicação de multa de ofício no percentual de 150% sobre o valor do imposto devido conforme previsto no inciso I, combinado com o §1º, do art. 44[7] da Lei n. 9.430/96[8], redação dada pelo art. 14 da Lei n. 11.488/07[9], assim como a configuração de crime contra a ordem tributária, nos termos dos art. 1º[10] e 2º[11] da Lei n. 8.137/90[12], cabível representação fiscal para fins penais, nos moldes do Decreto n. 2.730/98[13].
Apesar de todo o aparelhamento desenvolvido pela Receita Federal nos últimos anos para o desenvolvimento da fiscalização de forma eficaz e eficiente, ainda são cometidos desvios interpretativos para arrecadar, com violação dos direitos e garantias do contribuinte – o que, de fato, está ocorrendo nas autuações de sociedades profissionais, em especial as sociedades médicas.
Não é possível tratar o Direito Tributário sem conhecer o Direito Privado, ou mesmo, sem compreender e interpretar as minúcias das relações privadas. Afinal, a celebração de negócios jurídicos que importem em opção por determinada carga tributária é legítima e está inserida no âmbito de sua liberalidade, por vezes incentivada pelo legislador, e que é assegurada constitucionalmente.
[1] http://receita.economia.gov.br/dados/resultados/fiscalizacao/arquivos-e-imagens/2018_02_14-plano-anual-de-fiscalizacao-2018-versao-publicacao_c.pdf
[2] http://receita.economia.gov.br/dados/resultados/fiscalizacao/arquivos-e-imagens/2019_05_06-plano-anual-de-fiscalizacao-2019.pdf
[3] Art . 71. Sonegação é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária: I – da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias materiais; II – das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente.
[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4502.htm
[5] Art . 72. Fraude é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do impôsto devido a evitar ou diferir o seu pagamento.
[6] Art . 73. Conluio é o ajuste doloso entre duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas, visando qualquer dos efeitos referidos nos arts. 71 e 72.
[7] Art. 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas: § 1º. O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será duplicado nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis. (Redação dada pela Lei nº 11.488, de 2007)
[8] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9430.htm
[9] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11488.htm
[10] Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.
[11] Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: I – fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo; II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; III – exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal; IV – deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento; V – utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
[12] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8137.htm
[13] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2730.htm
Escrito por Luís Márcio Bellotti Alvim